Reproduzido do site operamuni.com.br – Por James Kleinfeld e Max Blumenthal | Paris | Alternet – 22/12/2015 – 06h00

Relatos mostram quadro de pressões exacerbadas há muito tempo sobre as relações intercomunitárias; ”Temos a sensação de que… este não é o mesmo país, que vivemos em uma espécie de sub-humanidade”, diz ativista de minorias

O documentário Je Ne Suis Pas Charlie [Eu não sou Charlie], lançado no final do ano passado, avalia o cenário da sociedade francesa na sequência dos ataques à revista satírica Charlie Hebdo, ocorridos em janeiro de 2015. Os cineastas entrevistaram representantes das comunidades judaica e muçulmana francesas, ativistas políticos, acadêmicos e cidadãos comuns. Os relatos revelam um quadro de pressões exacerbadas há muito tempo sobre as relações intercomunitárias, que estão rapidamente se aproximando de um estado de conflito civil de baixa intensidade. Os cidadãos de minorias estão em ebulição dentro de um sistema que deu margem para a expansão de contatos diários com a discriminação e a exclusão sistemática do espaço público.

Em Paris e em diversas cidades europeias, foram realizados protestos em apoio às vítimas do ataque contra o jornal
Por sua vez, a realidade francesa tem sido pontuada por atos de violência aparentemente aleatórios, espetacularmente horrendos, realizados por indivíduos que provêm das áreas mais excluídas da sociedade francesa. Eles são ao mesmo tempo cidadãos nascidos na França e os mais recentes forasteiros do país. Os principais perpetradores dos ataques ao Charlie Hebdo e das atrocidades de novembro não eram uma presença estrangeira que perturbou um pacífico status quo na sociedade francesa, mas subprodutos indesejados, “párias” da República Francesa e de seu legado imperial no Oriente Médio.

Veja aqui o filme no site da Vimeo (em inglês)

Quer se queira ou não descrever a situação de pobreza nos banlieues (subúrbios) franceses como um claro apartheid, como fez o primeiro-ministro Manuel Vall este ano, a combinação tóxica de políticas governamentais militaristas no exterior e políticas discriminatórias e draconianas em casa resultou em uma inclinação autoritária entre o público em geral. Para os muçulmanos franceses e outras minorias, a situação se assemelha cada vez mais aos transtornos enfrentados pelos negros na África do Sul na época do apartheid e mesmo aos dos palestinos vivendo sob ocupação militar israelense. Embora minorias francesas enfrentem apenas uma sombra da violência desproporcional que Israel inflige aos palestinos, elas se encontram em um permanente estado de exclusão imposto por um regime de crescente repressão brutal.

Proibição do véu islâmico – O racismo, que sempre pairou na superfície da sociedade francesa, alcançou máximas históricas. Nos meses que se seguiram aos ataques ao Charlie Hebdo, o Coletivo Contra a Islamofobia constatou um aumento de 70% nos incidentes islamofóbicos, 80% dos quais são diretamente voltados contra mulheres muçulmanas, normalmente visadas porque usam o hijab. Isso inclui linguagem islamofóbica, agressões verbais e físicas e danos a propriedades. Desde os ataques terroristas de 14 de novembro, mesquitas, açougueiros halal, restaurantes de kebab e prefeituras têm sido atacados.

A escala dessa onda racista contra muçulmanos pode ser percebida na declaração do policial parisiense que disse estar “sobrecarregado com falsas acusações” feitas por civis contra pessoas tidas como muçulmanas. Isso segue lado a lado com o uso sistêmico de caracterizações raciais pelas forças de segurança francesas. Essa investida populista contra a comunidade muçulmana tem sido incitada pela islamofobia de alto grau da parte de líderes do país, cujos excessos incluem leis banindo o véu islâmico, fechamento de mesquitas, imposição de líderes religiosos do tipo fantoche, amigos do Estado, remoção de opções halal para crianças muçulmanas nas escolas e a irascibilidade anti-imigrantes expelida por membros da Frente Nacional, de extrema direita, e o ex-presidente Nicolás Sarkozy, do Partido “Republicano”, de centro-direita.

Clique aqui para assistir trechos do documentário, em entrevista no Youtube com Max Blumenthal (em inglês)

Como essa situação se espelha ao apartheid no regime israelense de separação étnica, conhecido como hafrada, e a quem esse estado de coisas beneficia? Sem dúvida, a classe política da França tem sido cuidadosa ao evitar canonizar uma ideologia aberta de supremacia étnica e ainda assim os efeitos das ações estatais têm claramente conduzido ao mesmo resultado.

Houria Bouteldja, fundadora do partido minoritário esquerdista conhecido como Pessoas Nativas da República, alegou que é “a figura da pessoa europeia, branca, cristã” que o Estado privilegia com poder e riqueza na sociedade, que está legalmente posicionada sobre os “negros, os árabes, os muçulmanos e as pessoas ciganas”. Não é uma forma visível de apartheid, mas um regime de separação instituído por meio de formas naturalizadas, sistêmicas de dominação e violência. Seu colega de partido, Youssouf Boussouma, descreveu como as autoridades francesas proibiram manifestações contra o ataque de Israel a Gaza em 2014 e adotaram duras punições contra rapazes muçulmanos que foram para as ruas protestar. ”Este governo se comporta com certas parcelas da população como se eles realmente fossem cidadãos de um país ocupado”.

banlieue francais maghrebiens
A realidade apresentada por Bouteldja e Boussouma reflete as consequências de um longo processo geracional de exclusão e desigualdade que emerge diretamente da história do colonialismo francês na África e no Oriente Médio, o tratamento dos colonizadores franceses às populações nativas que governava e as ações do Exército francês naquelas colônias.

Anel viário – A separação étnica é mantida também no espaço urbano, onde grande número de comunidades árabes e africanas definha em uma espiral de pobreza, relegadas a uma cidadania de segunda classe e fisicamente separadas por planejamento deliberado. Divisões étnicas são mais evidentes em Paris, onde sucessivas ondas de imigração das colônias francesas na África e Oriente Médio foram estabelecidas em subúrbios distantes, com poucos recursos públicos. Enquanto isso, a gentrificação está empurrando as comunidades minoritárias remanescentes para fora do socialmente organizado centro parisiense, relegando-as à miserização e desespero dos banlieues. A Periférica, o anel viário que circunda os 20 distritos de Paris, elegantemente construído no subterrâneo dos bairros nobres do Oeste e Sul, funciona como um bloqueio de estrada que corta o acesso de e para os distritos de classe baixa de Saint-Ouen, Saint-Denis, Aubervilliers e Montreuil, no Norte e Leste.

O resultado disso é uma crescente homogeneização étnica e cultural do centro, pela expulsão dos Outros para a periferia. Como observa Boussouma, o ativista pelos direitos das minorias: ”Temos a sensação de que… este não é o mesmo país, que essas não são as mesmas normas, nem as mesmas referências, que vivemos em uma espécie de sub-humanidade”.

13 de novembro

Depois das atrocidades de 13 de novembro, o presidente François Hollande impôs o estado de emergência na França, que depois foi prorrogado pelos três meses seguintes. As regras da emergência representam uma terra de ninguém legal entre a lei comum dos tempos de paz e o estado de sítio dos tempos de guerra, o que permitiu ao Estado francês desencadear uma guerra sem precisar convocar uma.

Essa é uma guerra de baixa intensidade, cujas principais ferramentas são legais e judiciais em vez do apoio em ofensivas físicas. O estado de emergência permite que autoridades locais estabeleçam toques de recolher, limitem a liberdade de movimento e entrem em residências em certas áreas, proíbam pessoas de ingressar em determinadas zonas e coloquem-nas sob prisão domiciliar de forma arbitrária. Cidadãos franceses que se lembram do regime de Vichy[1] fizeram a conexão entre a política expansiva de prisões domiciliares e a criação de campos de concentração pelo regime de Vichy, que usou a mesma expressão “prisão domiciliar” para justificar sua repressão draconiana. O estado de emergência era também usado durante a Guerra da Argélia para prender milhares de suspeitos de simpatizar com os nacionalistas.

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Publicidade – Que tipo de resultado podemos esperar quando a formulação de perfis étnicos como alvos das forças de segurança francesas está armada com um estado de emergência? No mesmo instante em que o Exército francês está reforçando a sua presença militar na Síria, é impossível protestar contra essas operações militares, assim como era ilegal se reunir em grandes multidões para as conversações climáticas da COP21, realizadas recentemente em Paris. E, de fato, 26 ativistas ambientalistas foram colocados sob prisão domiciliar, o que os impediu de protestar contra as negociações sobre o clima.

As novas regras foram aplicadas mais firmemente contra os moradores minoritários dos banlieues classificados como “terroristas”. No dia seguinte aos ataques de 13 de novembro em Paris, a polícia invadiu o bairro pobre de St. Denis, onde dois dos agressores viviam, pararam e revistaram jovens árabes em massa e invadiram casas indiscriminadamente. No início de dezembro, as autoridades tinham fechado, pelo menos três mesquitas, e apreendido centenas de pessoas, após mais de 2.200 incursões realizadas sob a premissa de operação antiterrorismo. Laurent Wauqiuez, o terceiro na liderança do Partido Republicano, de Nicolas Sarkozy, chegou mesmo a sugerir colocar em campos de internamento cidadãos franceses sob investigação por terrorismo.

marcha je suis charlieIsrael – Ao mesmo tempo em que a dinâmica na sociedade francesa passou a se assemelhar à de Israel-Palestina, com fraturas profundas em linhas étnicas, supressão de liberdades civis e incitamentos racistas, a crise Israel-Palestina era importada para a sociedade francesa.

O governo francês acalenta uma relação subserviente para com o Estado de Israel, tendo convidado o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, a ir a Paris, na sequência dos ataques de janeiro, enquanto servilmente apoia seus ataques sucessivos em Gaza. As forças de segurança e de inteligência da França cooperam estreitamente com os seus homólogos israelenses; o município de Paris causou polêmica no início deste ano por acolher um evento de um dia homenageando a cidade de Tel Aviv na praia artificial parisiense, encobrindo o assassinato de crianças nas praias de Gaza um ano antes.

Na recente cúpula do clima, a COP 21, as autoridades parisienses usaram um balão de vigilância feito por Israel e testado pela primeira vez pelo Exército israelense nos palestinos sob ocupação.

A França também pode ser considerada como território contíguo na guerra contra a Palestina. O governo francês está contribuindo com as necessidades estratégicas de Israel, agindo como o único país no mundo que criminalizou o boicote ao Estado de Israel. Um memorando emitido em 2010 pela então ministra da Justiça, Michèle Alliot-Marie, exigiu ações legais contra ativistas do BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções), com as alegações capciosas de que suas atividades políticas representavam uma forma de discurso de ódio antissemita. Nas últimas semanas, dezenas de ativistas do BDS foram enquadrados na Justiça na chamada lei Lellouche. Este mês, mais quatro ativistas foram julgados em Toulouse por distribuição de material pró-boicote.

Omar Slaouti, ativista do BDS que foi chamado a julgamento no âmbito da diretiva de Alliot-Marie, vê ecos perturbadores da retórica israelense no discurso político francês. “A linguagem política usada para justificar guerras ocidentais de intervenção estrangeira é a mesma usada por Israel para justificar a sua ocupação da Palestina”, disse Slaouti, “e esse é o mesmo discurso adotado pela classe política e o setor de segurança franceses em relação às classes inferiores francesas.”

Durante uma manifestação no ano passado, em protesto contra a guerra de Israel na Faixa de Gaza sitiada, a extremista LDJ (Liga de Defesa Judaica) provocou uma briga com ativistas antiguerra, lançando artefatos contra eles e depois fugindo para a segurança atrás da linha da polícia antimotim. O governo francês reagiu ficando do lado da Liga e seus partidários e criminalizando outras manifestações de apoio à Palestina. Essa supressão da solidariedade palestina foi completada por ataques da LDJ a organizações judaicas antissionistas, como a UJFP (União de Judeus Franceses pela Paz) e judeus Revolucionários.

Um hacker franco-israelense chamado Ulcan (nome real Gregory Chelli) se refugiou em território controlado pelos israelenses, onde aterroriza ativistas do esquerdista UJFP. A brincadeira típica de Ulcan levou a polícia antimotim a ir até a casa do presidente da UJFP, Jean Guy Greilsamer, para responder a uma falsa alegação de que Greilsamer tinha matado toda a sua família e pretendia abrir fogo contra qualquer policial que se aproximasse de sua casa. Ulcan é um ex-membro da LDJ, que apelou à polícia francesa para coordenar diretamente operações de segurança, em especial em áreas densamente povoadas por judeus, como Sarcelles, que também contêm grandes populações muçulmanas e de imigrantes. Um líder da comunidade judaica de Sarcelles, David Haik, disse que essa colaboração já está ocorrendo de modo informal. “Quando o Exército é chamado para proteger alguns cidadãos franceses contra os outros”, Haik observou, “é o começo de uma guerra civil.”

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