Por FC Leite Filho
A presidenta Cristina Kirchner dirigiu-se neste domingo, 1. de março, pela última vez, no seu segundo mandato, ao Congresso da Argentina. Foi acompanhada de uma multidão de 400 mil pessoas e falou durante quase quatro horas. A concentração na Praça Congresso, que se destacava pelo colorido da juventude, em contraste com o encardimento dos engravatados da marcha elitista opositora de 18 de fevereiro, quis desagravá-la da campanha de infâmias, engendradas pelas corporações econômicas e midiáticas, praticamente, desde o primeiro dia de seu primeiro mandato em 2007.

A última dessas infâmias consistiu em uma denúncia fajuta que tinha como escopo a sua destituição por um golpe judicial-midiático, no bojo de um tumulto de rua, com a produção de muitos mortos e feridos. O golpe foi, finalmente, abortado na quinta-feira (26/02/15) pela desassombrada postura da chefa de Estado do país irmão, que culminou na sentença de um juiz independente – Daniel Rafegas, rechaçando tal denúncia como inepta e improcedente, em todos os sentidos. Segundo a denúncia, levantada pelo promotor Alberto Nisman, encontrado morto em seu apartamento há 40 dias, a presidenta e seu chanceler haviam conspirado para acobertar presumíveis autores de 85 mortes do atentado à sede da entidade israelita AMIA, no distante ano de 1994.

Cristina, de 62 anos, que alguns mais incautos e reféns da desinformação consideravam quase no chão, volta a dominar o cenário político platino, justamente quando lhe restam apenas nove meses à frente da Casa Rosada, uma vez que está impedida de uma segunda reeleição. Como terá peso na indicação de seu sucessor e nos destinos do país por mais algum tempo, ela ressurge, na mensagem ao Congresso, ainda mais empreendedora e desafiante do torniquete neoliberal, que avança para impor novas e mais amplas privatizações e arrocho econômico.

Anunciou, por exemplo, a reestatização de todas as linhas férreas, cuja boa parte havia sido renovada por sua administração, com modernos trens chineses, desfrutando inclusive de internet. A viúva e sucessora de Néstor Kirchner, que forma com ele um projeto de nação soberana, já havia antes desprivatizado, ao longo de três períodos presidenciais (um de Néstor e dois dela) os Correios, as Aerolíneas Argentinas, a YPF (petroleira) e o sistema de pensões e aposentadorias.

Antes de prosseguir neste relato, é importante conhecer o presente quadro argentino, muito parecido com o nosso brasileiro e outros similares da América Latina, mas diferenciado pelo fato de ter respostas mais específicas e contundentes às chantagens impostas aos modelos populares de governo pelo poder financeiro comandado pelos Estados Unidos e a Europa. Tais respostas se traduzem, além das reestatizações, na preservação das riquezas nacionais, do emprego, do salário e do enfrentamento à predação estrangeira, como a recusa terminante em pagar os chamados fundos abutres, que ameaçavam o país de um default.

No início de suas mensagem, a presidenta havia mencionado, por exemplo, o fato de que “muita gente viveu assustada ao longo do ano de 2014”. “Assustada pelo que escutava, porque ligava a TV e tinha que tomar Rivrotril. É que escutava os economistas – economistas que nunca produziram nada e cada vez que produziam arrebentavam com o país -, prognosticar que tudo ia para o inferno, o dólar ia subir a 25 pesos, que estávamos com 10 bilhões de reservas, que os abutres (fundos) vinham nos destroçar, que as pessoas perderiam o emprego… Então, quando as pessoas têm medo, não gastam, se retraem”, exemplificou.

Como se frustraram as previsões catastróficas da mídia de “um dezembro de saques, às escuras (sem energia)”, frisou Cristina, “e dezembro chegou e o mundo seguiu andando, o povo danou-se a gastar massivamente”. Daí, concluiu, ter havido os bons resultados nas vendas do natal, com as pessoas inundando todos os destinos turísticos do país, utilizando a Aerolíneas. AAerolíneas, a linha de bandeira nacional, como se sabe, foi reestruturada e potencializada, depois da reestatização determinada pela presidenta, que a tirou do poço, com uma frota de 26 aviões para as 76 modernas aeronaves atuais, está agora transportando os argentinos para os mais diversos destinos do país e do mundo

A presidenta se referia no caso ao processo de sabotagem e desestabilização que se abateu tanto sobre os governos de Néstor (este falecido em 2010 e que governou de 2003 a 2007), como de Cristina (2007-2015). Esta tem como base a mobilização dos meios massivos de comunicação – TVs, rádios, jornais, institutis de pesquisas e redes sociais – para divulgar e amplificar denúncias forjadas de corrupção, enriquecimento ilícito, intrigas palacianas e boatos para debilitar a moeda e a economia, além de incentivar saques a lojas e supermercados e atentados contra a redes elétricas e a malha ferroviária.

Tal processo causou muito reboliço e mesmo a derrota parcial do governo em algumas eleições parciais, mas a dupla de governantes conseguiu preservar a estabilidade democrática e realizar reformas estruturais, como a da educação e da lei de mídia, e obras de magnitude que fazem hoje da Argentina um dos países com mais solidez econômica e social, sem falar que continuou firme no timão administrativo e político. O desemprego caiu de 25% para 6,9%, os aposentados que, no regime privado, ganhavam uma média de 50 pesos (cerca de 50 reais), recebem hoje 3.800 pesos, com reajustes semestrais obrigatórios.

A propósito, Cristina lembrou ainda o investimento en matéria ferroviária que não se fazia há mais de 50 años” e o fato de seu governo ter “desendividado definitivamente a República Argentina”. Resaltou que, por isso, nunca mais haverá governos que tenham de assumir dívida para pagar dívida: “Se nos endividamos, que seja para obras de infraestrutura e projetos para o crescimento do país”.

Caso do procurador – Na mensagem ao Congresso, intitulada Estado da União, Cristina também se referiu à denúncia do procurador Alberto Nisman, cuja morte misteriosa lamentou, sustentando que, por carecer de provas, tratava-se de “uma peça vergonhosa, a qual “indignava todos os argentinos”. E culpou os mecanismos do poder judiciário, desde a Suprema Corte, pelo emperramento e obstrução  de 21 anos de investigações do caso AMIA, que se arrastam desde a data do atentado, em 1994.

Cristina Kirchner recordou, que, ainda como senadora, havia denunciado o juiz Juan José Galeano, que conduziu o caso AMIaA por 10 anos e foi expulso da magistratura e condenado por suborno e obstrução da justiça. Disse, igualmente, ter prestigiado a própria designação do procurador especial Nisman para o caso, decretada por Néstor. CA presidenta ainda revelou a existência de dois documentos do procurador, encontradas num caixa forte: um contendo a denúncia conhecida e outro com uma solicitação e de elogio ao governo para que pedisse apoio ao Conselho de Segurança das Nações Unidas visando interrogar os iranianos acusados do atentado.

“É uma vergonha. Fico com qual Nisman? Com o que nos acusa de encobrimento ou com o que se dirigia a mim reconhecendo tudo o que havíamos feito (pela causa)?

Finalmente, a presidenta aludiu aos acordos que fez em recente visita à China e que resultarão no financiamento de 20 bilhões de dólares ao seu país, incluindo projetos que vão desde o desafogo econômico produzido pelo crescimento das reservas e baixa da inflação até a construção de duas grandes represas hidrelétricas e uma nova central nuclear. Os acordos vinham sendo criticados pela mídia e a oposição por esta controlada, já que contraria os interesses ocidentais de domínio da região:

“Não se pode ser tão estúpido, tão colonizado, tão subordinado intelectualmente, tão pequeno de neurônios. Por favor, como não virão os chineses? Qual é o medo?”
—–
Leia também:
Cristina viaja a China depois de desmontar megafactoide

O Procurador Nisman chegou a cogitar de prender a presidenta

DEIXE UMA RESPOSTA